Entenda o crime organizado na Bahia, o estado do Brasil com o maior número de facções
O governador Jerônimo Rodrigues classificou o crime organizado como “o maior inimigo” do estado

Criminosos armados |Foto: Victor Moriyama/The New York Times
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, referente ao ano de 2024, revelou que a Bahia é o segundo estado mais violento do Brasil, com cerca de 40,6 Mortes Violentas Intencionais (MVI) a cada 100 mil habitantes, atrás somente do Amapá (45,1). Ao mesmo tempo, a Bahia é o estado brasileiro com o maior número de facções criminosas, com cerca de 20 grupos em atuação, como mostra o levantamento da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do Ministério da Justiça.
Recentemente, o governador Jerônimo Rodrigues (PT) classificou o crime organizado como o “maior inimigo” do estado, e disse que estuda ações de combate às facções criminosas em conjunto com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O nosso maior inimigo é o crime organizado. A Bahia não produz armas. De onde vem essas armas? É um comércio. A Bahia não tem essa indústria de drogas. Vem de fora. Eu tenho mediado muito uma conversa com o presidente Lula, para a gente poder encerrar essas coisas nas fronteiras, porque é responsabilidade federal. A nossa parceria com a Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal é muito grande e isso tem trazido pra nós um grande efeito.
Contudo, antes de combater esse grande “inimigo”, é necessário entender como ele surgiu e como ele age.
Como surge uma facção criminosa?
Geralmente, as facções e organizações criminosas nascem a partir da comunhão de indivíduos encarcerados, que se unem dentro dos presídios para buscar proteção e revolta, como explica o sociólogo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Ignacio Cano, que não vê essa associação como um fator somente negativo.
"Na minha avaliação, o fato de os presos se organizarem, terem líderes coletivos, etc. Não é negativo, acontece em todas as prisões do mundo. Inclusive é positivo para poder negociar com os presos em caso de tensão. O problema é essa vinculação com as redes criminosas de fora, e as organizações de presos dentro dos presídios", afirma Cano.
Foi assim com o Comando Vermelho (CV) e o com o Primeiro Comando da Capital (PCC), as duas maiores facções criminosas presentes no território brasileiro.
O Comando Vermelho, ou Comando Vermelho Rogério Lemgruber, foi formado por reincidentes da antiga facção Falange Vermelha, criada por Rogério Lemgruber, que durante a década de 70 lutava pelo fim da tortura e dos maus tratos aos prisioneiros. Hoje, o grupo é conhecido especialmente pelo comando do tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
Já o Primeiro Comando da Capital, o maior grupo criminoso do Brasil, foi fundado em 1993 no anexo "Piranhão" da Casa de Custódia de Taubaté, até então a prisão mais segura do estado de São Paulo, por oito presidiários transferidos da cidade de São Paulo, conhecidos como "Os da capital". O PCC surgiu com a proposta de "combater a opressão dentro do sistema prisional paulista" e "vingar a morte dos 111 presos" no "massacre do Carandiru", quando a Polícia Militar matou presidiários no pavilhão 9 da extinta Casa de Detenção de São Paulo.
Atualmente, tanto o CV quanto o PCC atuam em 24 dos 26 estados do país, incluindo a Bahia, além do Distrito Federal. O único estado que está livre da atuação das duas facções é o Rio Grande do Sul, que é o terceiro com o maior número de facções (10), atrás de Minas Gerais (11) e da Bahia (20).
Enquanto o Rio de Janeiro é dominado pelo Comando Vermelho e não permite a entrada do PCC, apesar de outras quatro organizações criminosas também disputarem o território carioca, o estado de São Paulo surge como uma exceção no Brasil e tem o PCC como a única facção do estado mais rico do país.
O diretor do departamento de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública, ligada ao Ministério da Justiça, Robson Robin da Silva, avalia que o crescimento das facções criminosas no Brasil está ligado a falhas no sistema prisional.
“Essas pessoas já estavam na rua, desassistidas de estrutura, desassistidas de família, desassistidas de oportunidade e já não têm sentimento de pertencimento. Na medida em que encontram o crime, e vão para o encarceramento, não encontram um sistema adequado e capaz de recuperá-los, não encontram o estado lá dentro. Eles são entregues tão somente ao aspecto punitivo da questão, estão encarcerados, e tem todo o tempo do mundo para pensarem no que quiserem. É como se diz: a cabeça vazia e todo o tempo do mundo, vira oficina do diabo", explicou.
Na Bahia, o processo de surgimento do Bonde do Maluco (BDM) foi semelhante ao que aconteceu com o CV e o PCC. O grupo nasceu em 2015 no Pavilhão V do Complexo Penitenciário da Mata Escura, em Salvador, como uma ramificação de uma extinta facção criminosa conhecida como Caveira, que tinha como seu líder o assaltante de bancos José Francisco Lumes, conhecido como "Zé de Lessa", morto em um confronto com policiais militares do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, em 2019.
Além de Zé de Lessa, o criminoso Ednaldo Freire Ferreira, o “Dadá”, também é apontado como um dos fundadores do Bonde do Maluco.
Em 2017, apenas dois anos após sua fundação, o Bonde do Maluco já dominava 10 bairros de Salvador e havia expandido a sua atuação para os estados de Sergipe, Goiás e Alagoas. Atualmente, com cerca de 15 mil membros, o BDM é a maior organização criminosa baiana, com domínio em algumas regiões da capital e da Região Metropolitana de Salvador, assim como na região da Chapada Diamantina, do Centro-Norte e no Sertão Baiano.
Contudo, as raízes do crime organizado na Bahia precedem em mais de 20 anos a fundação do Bonde do Maluco.
As facções da Bahia
Na década de 90, grande parte do comércio de drogas na Bahia estava concentrado no Morro do Águia, em Salvador, sob o comando de Raimundo Alves, conhecido como “Ravengar” ou “Rei do Pó”. Com a prisão dele em 2004, houve uma descentralização da venda de entorpecentes no estado, o que possibilitou o surgimento das facções Caveira e Comando da Paz (CP), ambas nascidas no Complexo Penitenciário da Mata Escura.
Apesar de extintas nos dias de hoje, elas impulsionaram o surgimento de outras organizações criminosas, como foi o caso do Bonde do Maluco. Um estudo identificou que atualmente existem cerca de 20 organizações criminosas em 19 cidades baianas, com a maior parte delas concentradas em Salvador.
Veja quais são principais facções presentes na Bahia:
- Bonde do Maluco (BDM)
- Comando Vermelho (CV)
- Primeiro Comando da Capital (PCC)
- Terceiro Comando Puro (TCP)
- Katiara
- Ordem e Progresso (OP)
- A Tropa
- Bonde do Ajeita
- Raio A
- Raio B
- Tropa do KLV
- MK4
- DMP
- Mercado do Povo Atitude (MPA)
- Campinho (CP)
- Bonde do Neguinho (BDN)
- Bonde do SAJ
- Honda
- Família do Norte
A maior parte das organizações, principalmente as que estão em cidades do interior do estado, corresponde a pequenos núcleos criminosos, que ainda operam de forma bastante localizada. Muitas dessas facções são dissidentes de outras organizações, que ainda podem ser cooptadas por rivais conforme avançam as disputas territoriais.
Segundo o integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Guaracy Mingardi, a maioria quase absoluta das organizações criminosas do país é de pequeno porte e possui uma atuação bastante localizada, setorizada em comunidades e cidades ou, no máximo, regionalizada, como acontece com o BDM, enquanto apenas o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) têm influência nacional e internacional.
Para Dudu Ribeiro, integrante da rede de Observatórios de Segurança, o crescimento do crime organizado e do número de facções não só na Bahia, mas em todo o Nordeste, estão diretamente relacionados à escalada de conflitos a nível nacional entre o CV e o PCC.
Essa pulverização do comércio, em que as organizações locais se rearranjam com organizações nacionais, tem sido um grande impulsionador nos conflitos na Bahia, bem como no Nordeste todo. O marco histórico recente foi o fim da paz estabelecida entre o PCC e o CV a nível nacional, que impulsionou a retomada dos conflitos sangrentos nas cidades e o fortalecimento das milícias.
O sociólogo Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), concorda com Ribeiro e explica também que a proliferação dessas organizações “não tem uma razão única”. “Isso pode acontecer porque não se conseguiu costurar alianças suficientes para uma unificação, isso pode ter a ver com a dinâmica anterior, entre ‘os caveiras’ e o Comando da Paz e a forma como isso aconteceu, as disputas internas desses grupos, a chegada de grupos do Sudeste. Então, tem um conjunto de fatores que são muito conjunturais que dependem muito das relações pessoais entre as lideranças”, afirma Hirata.
Assim como o sociólogo explica, com a expansão do Bonde do Maluco a partir de 2015, o Comando da Paz fez um acordo com o Comando Vermelho, se tornando uma célula da facção carioca na Bahia em troca de armas, estratégia de guerra e reforço. Diante disso, o BDM se aliou ao TCP, principal rival do CV no Rio de Janeiro.
O diferencial do PCC
Ao contrário das outras facções, o Primeiro Comando da Capital, que hoje é a maior do país, direciona seu foco para o comércio internacional, sendo a segunda maior organização criminosa do mundo no tráfico de drogas transnacional. A Bahia tem sido usada estrategicamente pela organização para escoar narcóticos para 121 países, já que conta com o maior litoral do Brasil, com 1.100 km de extensão.
Para isso, o PCC se mantém presente, sobretudo, nas unidades prisionais de algumas das principais cidades do estado, como Salvador, Feira de Santana, Itabuna, Teixeira de Freitas e Eunápolis. Um agente do Departamento Especializado de Investigações Criminais (DEIC) explica que “as decisões importantes da facção, na maioria das vezes, sai de dentro dos presídios, onde estão algumas lideranças”.
Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudo da Violência da USP (NEV-USP), também detalha a estratégia do grupo criminoso:
O PCC não controla territórios em nenhum lugar. Ele busca ter um controle e proteção dentro das prisões e se aliar a gangues locais. Ele sabe que o varejo e o controle territorial trazem um grande problema, você tem que corromper a polícia, você tem que entrar em conflito com os caras. Eles nunca tiveram a pretensão de exercer esse controle